“Meu corpo está íntegro. Minha alma, não sei”

01/07/2009

MARCO AURÉLIO SILVA, ou Macarena, estuda Pedagogia na FEUSP. Não só observou de perto os acontecimentos de 9 de junho, como filmou e postou momentos importantes em seu canal do Youtube (http://www.youtube.com/user/marcoaasilva). “É com muito pesar e revolta que escrevo sobre a entrada da PM no câmpus da USP”, disse ele, “e o ataque que sofremos no dia 9 de junho de 2009. No mesmo dia, e no seguinte, escrevi a alguns amigos e familiares o que passei e senti, que segue abaixo.”

“Estávamos em manifestação pacífica do movimento estudantil, trabalhista e docente da USP. Ao acabar a manifestação, a massa retorna em passeata até a Reitoria, onde se dispersaria…

Acontece que, enquanto voltávamos, a polícia resolveu agredir. Militante não é santo, eu sei… Mas ainda assim, tropa de choque contra estudantes, trabalhadores e professores da USP é mais que covardia: é truculência, AUTORITARISMO, REPRESSÃO!!!

Depois de confrontos ao longo da avenida de entrada da USP, manifestantes feridos foram levados ao HU, porém a massa foi acuada no prédio da Hist/Geo da FFLCH. Com a PM toda em volta, ninguém podia entrar, ninguém podia sair…

Algumas bombas de gás foram atiradas DENTRO DO PRÉDIO!! Num vão amplo porém fechado, onde estávamos todos…

Durante muito tempo, fiquei com a máquina do Centro Acadêmico, filmando muuuita coisa. Durante boa parte, infelizmente, fiquei sozinho… passei muito mal, quase vomitei… E chorei, chorei, chorei muito em ver a história da humanidade retratada em alguns instantes, resumida ali ao vivo… A única coisa que me dava força para engolir o choro era saber que aquilo não era nada, absolutamente nada perto do que muitos já passaram. Não quero com isso diminuir a importância e o absurdo do evento, uma vez que todo o caos, sofrimento e humilhação não deixarão de existir – primeiro nos maiores conflitos, depois nos menores… Será gradativamente sim, mas enquanto princípio, somente quando o homem for capaz de sentir paz no coração, todo e qualquer conflito cessará… das guerras entre nações aos conflitos domésticos…

Assim, por princípio, quero dizer que o absurdo da ação do governo, a truculência e a repressão têm o mesmo valor que a guerra do Iraque, assim como têm o mesmo valor que a silenciosa violência doméstica cotidiana contra mulheres.”

Outra coisa muito importante que me aconteceu naquele dia foi avistar o professor Marcos Ferreira, da FEUSP, e sua esposa Solange, de mãos dadas, caminhando, se assim posso dizer. Segue o que escrevi ao professore no dia seguinte:

‘Subiram o gramado entre a Reitoria e a FFLCH, cruzaram a avenida conhecida como rua dos bancos, e dobraram à esquerda, permanecendo entre as árvores, no meio da avenida. E assim seguiram, ainda de mãos dadas, em meio à fumaça daquela tarde que alguns já chamaram de dia D da USP… Agradeço ao que, mesmo sem saber-me ali, me ensinou. Enquanto alguns corriam atordoados e, revoltosos, provavelmente pensavam em como revidar ou no que fariam se tivessem condições físicas de revidar, o sr. e sua esposa mantiveram-se serenos, ainda que tão atordoados quanto qualquer outro agredido pelo gás. Foi nessa imagem, ironicamente bela, e de profunda poesia, que num fim de tarde esfumaçado e à meia-luz pus-me a chorar… Ainda não consegui assistir ao vídeo da câmera, não sei se consegui captar essa imagem. Com certeza não captei – até porque em princípio seria impossível – o calor que senti em minh’alma, distinto de todo o calor que senti durante toda a tarde de ontem. Talvez, se eu fosse poeta, saberia retratar o que senti. Tentarei, neste e-mail, em outros, em música, pensamento, e qualquer outro espaço que me for concedido, declarar o que senti… Não posso retribuir-lhe à altura o que me proporcionou, mas agradeço da forma mais singela. Desde o fim do primeiro semestre de 2008, quando encerramos a disciplina Cultura e Imaginário 2, ansiei pelo momento em que poderia novamente desfrutar de teus ensinamentos. Sei que pode parecer sádico, mas agradeço muito por ter podido ontem retomar suas aulas. Sua serenidade inabalável é digna de muita reflexão de todos; ainda não digeri bem o que passou, mas espelho-me em sua postura para continuar caminhando nessa árdua vida de lutas, lutas serenas, lutas sinceras, do espírito emancipado ou a fim de emancipar-se. Grato, grato, eternamente grato, a ti e à tua esposa.’

E, por fim, encerro aqui como encerrei o e-mail a meus amigos e familiares:

‘Neste momento estou só, (…) a PM por todo o câmpus; os estudantes, professores e funcionários, em assembléia. Meu corpo está integro. Minha alma… não sei.'”

Prof. Marcos Ferreira (foto: Márcio Fernandes, AE)

Quantas pessoas você vê?

21/06/2009

Com estes vídeos, talvez dê para dimensionar o ato da quinta-feira, 18 de junho – quando milhares de estudantes, funcionários e professores das três universidades estaduais paulistas (a PM falou em 1.500 pessoas, mas as estimativas próprias falaram em 3 mil ou até 5 mil – dá pra contar nas imagens?) manifestaram-se pelo diálogo e pelo compromisso com uma educação superior de qualidade.

Manifestação passando, de ponta a ponta:

Manifestação vista por dentro:

“Medo de se indignar com a truculência”

20/06/2009

CADU ELMADJIAN não estuda mais na USP desde o ano passado, mas registrou uma opinião inconformada ao saber sobre o confronto da polícia no câmpus.

“O Deni repassou o relato de um professor da EACH sobre o que está havendo na USP e tudo isso é muito triste (como sempre…).

Não sei se é a minha cabeça problemática e delirante, mas eu me recordo com uma clareza perturbadora de como eu cresci junto a uma escalada cada vez mais intensa de intolerância entre as pessoas.

Talvez seja uma coisa só de São Paulo, talvez não. Ainda assim, eu me lembro, pequeno, de como as pessoas tinham menos medo de sair à rua, de falar com estranhos com os dois olhos bem abertos, e se indignar com a truculência.

Pessoalmente – muito por causa das minhas convicções filosóficas humanistas e ateístas – considero aterradora (e me sinto relativamente sozinho nesse sentimento) a passividade com que as pessoas assistem à violência atualmente. Parece que hoje está faltando uma palavra mais forte no léxico pra usar no lugar de barbárie.

Sobre o caso da USP especificamente, não vou opinar, porque sou um alheio eterno, mas tenho a impressão de que transferir para a PM todo o fardo da desgraça também não é muito razoável.

Um soldado da PM é um sujeito que vem de uma realidade não tão amigável quanto a dos nossos colegas uspianos, ganha pouco mais de 1.000 reais por mês pra sustentar uma família maior (estatisticamente falando) que a da maioria do pessoal da manifestação, enfrenta uma concorrência fodida pra estar onde está, pra fazer um serviço que quase sempre põe sua integridade em risco e não tem discriocionariedade administrativa (como a polícia civil ou federal), ou seja, apenas tem o dever de cumprir ordens (judicial ou de superior).

Não gosto da idéia de parecer advogado do diabo, até porque você sabe que eu jamais poderia concordar com essa postura que a PM freqüentemente adota quando desafiada, mas quando se grita “PM assassina!”, o melhor que se consegue é inflamar mais o ódio generalizado, reacender uma luta de classes despercebida e deixar impunes os verdadeiros responsáveis por alimentar essa infra-estrutura pública de selvageria.”

E você, onde estava?

14/06/2009

MAGNO RODRIGUES FARIA, estudante de Pedagogia na FEUSP, não estava na Universidade durante o ataque – “para o bem e para o mal”, como ele disse.

“Contrariando uma série de pessoas que dizem que somos vagabundos, estava trabalhando bem no momento do quiproquó! Estava trabalhando na produção de um espetáculo de teatro no quarto subsolo do SESC Pinheiros… Onde celular não pega!! Trabalhei até às 20h, que foi quando o meu celular começou a receber mensagens de chamadas perdidas… Minha mãe, irmãs, o pessoal do CA, os amigos… todos haviam me ligado… o que é um fato não muito comum… Tinha uma série de mensagens perguntando se eu estava bem e tudo mais, porém não estava entendo nada… Havia uma mensagem de texto de uma amiga que há muito tempo não nos comunicávamos e conversamos sobre a vida, o seu novo filho, a sua nova casa e aí ela perguntou: e a guerra que teve na USP hoje, hein?

Caraca!! Lembrei do ato e pedi informações, ela me disse que teve bomba de gás, tiros de borracha, gás de pimenta… Mas não sabia, não tinha idéia da proporção… E vi imagens televisivas e, caras e caros, ainda bem que estava de fora… Não no sentido de que me safei desta… mas, se eu presenciasse os meus amigos, muito deles irmãos em cenas destas, sendo encurralados e agredidos, acredito que não iria recuar e faria alguma bobagem…

Cheguei na USP por volta da meia noite neste dia e fui até o C.A.P.P.F. e tinham pessoas que me contaram versões e mais versões dos fatos… O fato é que fiquei estarrecido… e que fiquei entristecido quando no outro dia, haviam pessoas em estado de normalidade… como se NADA, eu disse NADA, repetindo para fixar, NADA tivesse acontecido…NADA… (e o pior é que muitas estavam no momento, e outras tantas viram ao vivo tal selvageria e…NADA).”

***

No caminho, com Maiakóvski
Eduardo Alves da Costa

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.

Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.

No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas manhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!

Onde você estava na hora da barbárie?

12/06/2009

PABLO ORTELLADO, professor da EACH-USP, estava no campus e achou que seria significativo escrever este relato no calor da hora – e difundi-lo num e-mail que até agora está sendo amplamente publicado, repassado e lido.

Prezados colegas,

O que os senhores lerão abaixo é um relato em primeira pessoa de um docente que vivenciou os atos de violência que aconteram poucas horas atrás na Cidade Universitária (e que seguem, no momento em que lhes escrevo – acabo de escutar a explosão de uma bomba).

Hoje, as associações de funcionários, estudantes e professores haviam deliberado por uma manifestação em frente à reitoria. A manifestação, que eu presenciei, foi completamente pacífica. Depois, as organizações de funcionários e estudantes saíram em passeata para o portão 1 para repudiar a presença da polícia do campus. Embora a Adusp não tivesse aderido a essa manifestação, eu, individualmente, a acompanhei para presenciar os fatos que, a essa altura, já se anunciavam. Os estudantes e funcionários chegaram ao portão 1 e ficaram cara a cara com os policiais militares, na altura da avenida Alvarenga. Houve as palavras de ordem usuais dos sindicatos contra a presença da polícia e xingamentos mais ou menos espontâneos por parte dos manifestantes. Estimo cerca de 1.200 pessoas nessa manifestação.

Nessa altura, saí da manifestação, porque se iniciava assembléia dos docentes da USP que seria realizada no prédio da História/Geografia. No decorrer da assembléia, chegaram relatos de que a tropa de choque havia agredido os estudantes e funcionários e de que se iniciava um tumulto de grandes proporções. A assembléia foi suspensa e saímos para o estacionamento e descemos as escadas que dão para a avenida Luciano Gualberto para ver o que estava acontecendo. Quando chegamos na altura do gramado, havia uma multidão de centenas de pessoas, a maioria estudantes correndo e a tropa de choque avançando e lançando bombas de concusão (falsamente chamadas de “efeito moral”, porque soltam estilhaços e machucam bastante) e de gás lacrimogêneo.

A multidão subiu correndo até o prédio da História/Geografia, onde a assembléia havia sido interrompida, e começou a chover bombas no estacionamento e entrada do prédio (mais ou menos em frente à lanchonete e entrada das rampas). Sentimos um cheiro forte de gás lacrimogêneo e dezenas de nossos colegas começaram a passar mal devido aos efeitos do gás – lembro da professora Graziela, do professor Thomás, do professor Alessandro Soares, do professor Cogiolla, do professor Jorge Machado e da professora Lisete, todos com os olhos inchados e vermelhos, e tontos pelo efeito do gás. A multidão de cerca de 400 ou 500 pessoas ficou acuada neste edifício, cercada pela polícia e 4 helicópteros. O clima era de pânico. Durante cerca de uma hora, pelo menos, se ouviu a explosão de bombas e o cheiro de gás invadia o prédio. Depois de uma tensão que parecia infinita, recebemos notícia de que um pequeno grupo havia conseguido conversar com o chefe da tropa e persuadido de recuar. Nesse momento, também, os estudantes no meio de um grande tumulto haviam conseguido fazer uma pequena assembléia de umas 200 pessoas (todas as outras dispersas e em pânico) e deliberado descer até o gramado (para fazer uma assembléia mais organizada). Nesse momento, recebi notícia de que meu colega Thomás Haddad havia descido até a reitoria para pedir bom senso ao chefe da tropa e foi recebido com gás de pimenta e passava muito mal. Ele estava na sede da Adusp se recuperando.

Durante a espera infinita no pátio da História, os relatos de agressões se multiplicavam. Escutei que a diretoria do Sintusp foi presa de maneira completamente arbitrária e vi vários estudantes que haviam sido espancados ou se machucado com as bombas de concusão (inclusive meu colega, professor Jorge Machado). Escutei relato de pelo menos três professores que tentaram mediar o conflito e foram agredidos. Na sede da Adusp, soube, por meio do relato de uma professora da TO que chegou cedo ao hospital, que pelo menos dois estudantes e um funcionário haviam sido feridos. Dois colegas subiram lá agora há pouco (por volta das 7 e meia) e tiveram a entrada barrada – os seguranças não deixavam ninguém entrar e nenhum funcionário podia dar qualquer informação. Uma outra delegação de professores foi ao 93o DP para ver quantas pessoas haviam sido presas. A informação incompleta que recebo até agora é que dois funcionários do Sintusp foram presos – mas escutei relatos de primeira pessoa de que haveria mais presos.

A situação, agora, é de aparente tranquilidade. Há uma assembléia de professores que se reuniu novamente na História e estou indo para lá. A situação é gravíssima. Hoje me envergonho da nossa universidade ser dirigida por uma reitora que, alertada dos riscos (eu mesmo a alertei em reunião na última sexta-feira), autorizou que essa barbárie acontecesse num campus universitário. Estou cercado de colegas que estão chocados com a omissão da reitora. Na minha opinião, se a comunidade acadêmica não se mobilizar diante desses fatos gravíssimos, que atentam contra o diálogo, o bom senso e a liberdade de pensamento e ação, não sei mais.

Por favor, se acharem necessário, reenviem esse relato a quem julgarem que é conveniente.
Cordialmente,

Prof. Dr. Pablo Ortellado
Escola de Artes, Ciências e Humanidades
Universidade de São Paulo

Campus em flores

10/06/2009

09/06/2009.
Nossa resposta é o argumento.